quinta-feira, 5 de março de 2009

Pérola Literária

Ao cair da tarde (singular expressão é esta, que faz da luz ou do seu desmaio, "ao cair da noite", algo de pesado e denso que desce sobre a terra agressivamente), depois do dia de trabalho, se o tempo está macio e o cansaço não pede o rápido refúgio em casa, onde em geral outro trabalho espera, gosto de andar pelas ruas da cidade, distraído para os que me conhecem, agudamente atento para todo o desconhecido, como se procurasse decididamente outro mundo. Posso então parar em frente de uma montra onde nada existe que me interesse, ser microscópio assestado às pessoas, radiografar rostos para além dos próprios ossos, penetrar na cidade como se mergulhasse num fluído resistente, sentindo-lhes as asperezas e as branduras. Nessas ocasiões é que faço as minhas grandes descobertas: um pouco de fadiga, um pouco de desencanto, são, ao contrário do que se pensaria, os ingredientes ótimos para a captação mais viva do que me cerca".
Trecho de "A Bagagem do Viajante", de José Saramago

Nenhum comentário:

Postar um comentário